A Recuperação Judicial Para Produtores Rurais Ameaça Ou Salvação?
Por Fabianie Mattos Limoeiro
Criou-se a “recuperação judicial do produtor rural”, também denominada “RJ Pessoa Física”, baseada na premissa de que o indivíduo produtor rural sem nenhuma organização contábil ou registro formal também estaria apto a beneficiar-se da proteção regida pela lei 11.101/05. Uma teoria explicitamente condenada pela própria lei, mas que gerou simpatia de parte do Poder Judiciário, especialmente durante os últimos dois anos. O mesmo Judiciário que ainda não sabe responder como, na hipótese de descumprimento do plano recuperacional, seria possível a decretação de falência em desfavor de mero CPF.
O agronegócio é, parece hoje um setor totalmente seguro, mas teremos que esperar final de 2020, para validar este setor. Analisando a situação o agronegócio é o setor com mais riscos de uma desaceleração sistêmica na concessão de crédito privado. E nada tem a ver com a pandemia de coronavírus que assola o mundo, mas sim com outra situação, o fato de estarem totalmente e econômica sob o custeio privado.
Nassim Taleb é uma das figuras do momento. Ele é autor de best-sellers filosóficos e matemáticos (que, apesar disso, são lidos com destaque na área financeira), bate de frente com acadêmicos tradicionais (inclusive com ganhador de prêmio Nobel) e assumiu ares de invencibilidade ao supostamente auxiliar, na condição de conselheiro, uma gestora a obter retornos gigantescos durante o atual período de turbulência.
Em seu livro “A lógica do Cisne Negro”, Taleb aponta grossíssimo modo, que eventos de elevada magnitude e baixa probabilidade de ocorrência são impossíveis de se prever e, justamente por isso, são ignorados pela maioria dos acadêmicos e profissionais.
O nome do livro referência, de fato, apresenta a história de dois Brasis. Aquele da década de 70, cuja produção agrícola era ínfima a ponto de o país exportar alimento, ao Brasil de hoje, diversos agentes econômicos não contavam, mesmo no início da crise, com uma queda tão abrupta de demanda — agora, chega-se a estimar a queda do PIB brasileiro em até 11% em 2020, mesmo tido como abastecedor do mundo e que muito avançou desde o fomento ao crédito agrícola trazido, em especial.
No entanto, o agronegócio é, neste momento, o setor da economia mais ameaçado pelos riscos de uma desaceleração sistêmica na concessão de crédito privado.
E nada tem a ver com a pandemia de coronavírus que assola o mundo, mas sim com outra porque o produtor rural que busca financiamento privado junto a empresas de fornecimento de insumos agrícolas, como sementes, adubos e químicos, firma contrato em que assume o dever de aplicar os recursos no plantio sob o compromisso de futuramente entregar o produto ou subproduto agrícola ao credor, o qual finalmente exporta a commodity ou realiza sua circulação no mercado interno mediante contratos firmados ao mesmo tempo em que financiou o produtor, utilizada por produtores rurais que pagam o preço de teses jurídicas adversas e, sobretudo, insipientes.
O livro utilizado para explicar minha tese, é famoso exemplo (usado, e.g., por Karl Popper para tratar de falseabilidade) advindo da crença, até o século XVII, de que somente existiam cisnes brancos, pois na Europa nunca havia se visto outro tipo.
Contudo, como observação, veja-se que Taleb nosso escritor de best seller não considera a atual crise, decorrente da presente pandemia, como um cisne negro, mas, sim, como um cisne branco, pois ela foi prevista por muitas pessoas — ele, inclusive.
Desvirtuando por completo o instituto da recuperação judicial, criou-se a “recuperação judicial do produtor rural”, também denominada “RJ Pessoa Física”, baseada na premissa de que o indivíduo produtor rural sem nenhuma organização contábil ou registro formal também estaria apto a beneficiar-se da proteção regida pela lei 11.101/05. Uma teoria explicitamente condenada e fadada ao insucesso ao longo prazo.
Com uma visão de ponto de vista tradicionalista e conservador, que não se achega a previsão, mas sim a pratica do mercado, as RJ Pessoa Física engessar ainda mais o mercado, pois é praticado majoritariamente pelas revendas do interior, pela agroindústria, por tradings e também por cooperativas, e cujo instrumento de garantia é a já citada cédula de produto rural (CPR), título de crédito cuja função social é de tamanho respeito jurídico, que o próprio STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.327.643/RS, afastou a CPR, inclusive, de penhoras trabalhistas, reconhecendo a posição de privilégio dos credores que financiam o agronegócio brasileiro e detêm o direito absoluto sobre o produto ou moeda quando do vencimento da obrigação.
Ao firmar o contrato, dois princípios essenciais da teoria contratual são assumidos pelas partes: a autonomia de vontade, que torna o produtor rural confortável para estabelecer uma relação jurídica com quem determinar, e o princípio da obrigatoriedade do contrato, que obriga os contratantes à força vinculante daquela convenção.
Se uma determinada empresa deseja firmar contrato de crédito (ou seja, se deseja fornecer insumos agrícolas para futuro recebimento em) com agricultor que dispõe de demonstrações financeiras, tais como o balanço patrimonial, Demonstração de Resultado do Exercício (DRE) ou Demonstração do Fluxo de Caixa, referida empresa (financiadora) é capaz de aferir com acurácia, ou, ao menos, com alguma segurança, o risco de crédito oferecido pelo produtor.
Estes são os cenários sonegados pela indústria das RJs, assim como danosos são os reflexos ao fomento privado rural.
Para a imensa maioria dos credores, o produtor não recebe outro estigma senão o de “perdido, perdido e meio”. Com a sua reputação altamente marginalizada, o produtor passa a sofrer com a falta de financiamento das revendas, não acessa bancos, é excluído da carteira de grandes fornecedores e acaba por perceber que o seu futuro como produtor rural, ou seja, o seu CPF, tornou-se refém justamente das instituições credoras que assumiram o calote do passado em seus respectivos resultados.
Diz-se “calote” porque as empresas financiaram o produtor, negociaram a venda do grão a terceiros, não receberam o produto e tiveram de readquirir a commodity a preços diversos daquele inicialmente contratado para não responderem às sanções contratuais. É dizer: no mesmo país, para os mesmos contratos, valores protecionistas distintos são empregados pela jurisprudência.
Fonte: Thiago Polisel; Eduardo da Silva Mattos
Fabianie Mattos Limoeiro é advogada, Administradora Judicial, sócia do escritório Mattos Limoeiro Advogados e da ML Consultoria, Especialista em Direito Bancário e Doutoranda em Direito Trabalho pela Universidade UBA – Universidade Federal de Buenos Aires. OAB/MT 8920-B, CONFORME CÓDIGO DE ÉTICA.